“Conhecimento da morte eu te saúdo, meu querido pequeno e velho cemitério de minha cidade, onde aprendi a brincar com os mortos. É aqui onde eu quis que me fosse revelado o segredo de nossa curta existência através das aberturas de antigos caixões solitários”. (Poema escrito por Pichon em 1924)
O sentido deste prólogo é o de esclarecer alguns aspectos de meu esquema referencial, questionando sua origem e sua história, em buscada coerência interior de uma tarefa que mostra nestes escritos, com temáticas e enfoques heterogêneos, seus diferentes momentos de elaboração teórica.
Como crônica do itinerário de um pensamento será, necessariamente, autobiográfico, na medida em que o esquema de referência de um autor não só se estrutura como uma organização conceitual, mas se sustenta em alicerce motivacional, de experiências vividas. É através delas que o investigador construirá seu mundo interno, habitado por pessoas, lugares e vínculos que, articulando-se com um tempo próprio, em um processo criador, irão configurar a estratégia da descoberta.
Poderia dizer que minha vocação pelas ciências do homem, surge da tentativa de resolver a obscuridade do conflito entre duas culturas. Com as raízes da emigração de meus pais de Genebra para o Chaco fui, desde os quatro anos, testemunha e protagonista da inserção de um grupo minoritário europeu em um estilo de vida primitivo. Assim deu-se em mim a incorporação, certamente não inteiramente discriminada, de dois modelos culturais quase opostos. Meu interesse pela observação da realidade teve, inicialmente, características pré-científicas e, mais exatamente, místicas e mágicas, adquirindo uma metodologia científica através da tarefa psiquiátrica.
A descoberta da continuidade entre sono e vigília, presentes nos mitos que acompanharam minha infância e nos poemas que testemunham meus primeiros esforços criativos, sobre a dupla e fundamental influência de Lautréamont e Rimbaud, favoreceu em mim desde a adolescência, a vocação pelo sinistro.
A surpresa e a metamorfose como elementos do sinistro, o pensamento mágico e estruturado como identificação projetiva, configuram uma interpretação da realidade características das populações rurais influenciadas pela cultura guarani, onde vivi até os 18 anos. Ali, toda aproximação de uma concepção de mundo é de caráter mágico, e é regida pela culpa. As noções de morte, luto e loucura, formam o contexto geral da mitologia guarani.
A internalização destas estruturas primitivas dirigiu meu interesse para a desocultação do implícito, na certeza de que, por trás de todo pensamento que segue as leis da lógica formal, subjaz um conteúdo que, através de diferentes processos de simbolização, inclui sempre uma relação com a morte, em uma situação triangular.
Situado em um contexto no qual as relações causais eram encobertas pela idéia da arbitrariedade do destino, minha vocação analítica surge como necessidade de esclarecimento dos mistérios familiares e de questionamentos motivos que dirigiam a conduta dos grupos imediato e mediato. Os mistérios não esclarecidos no plano do imediato (a que Freud chama “romance familiar”) e a explicação mágica das relações entre o homem e a natureza, determinaram em mim a curiosidade, ponto de partida de minha vocação para as ciências do homem.
O interesse pela observação dos personagens prototípicos, que nas pequenas populações adquirem uma significância particular, estava orientado, ainda não conscientemente, para a descoberta dos modelos simbólicos, através dos quais torna-se manifesto o interjogo de papéis que configuram a vida de um grupo social em seu âmbito ecológico.
Algo do mágico e do mítico desapareceria, então, frente à desocultação dessa ordem subjacente, porém explorável: a inter-relação dialética entre o homem e o seu meio. Meu contato com o pensamento psicanalítico foi anterior ao ingresso na Faculdade de Medicina e surgiu como o achado de uma chave que permitiria decodificar aquilo que era incompreensível na linguagem e nos níveis de pensamento habituais. Ao entrar na Universidade, orientado por uma vocação destinada a instrumentalizar-me na luta contra a morte, o confronto desde cedo com o cadáver, que é paradoxalmente o primeiro contato do aprendiz de médico com seu objeto de estudo, significou uma crise. Ali reforçou-se minha decisão de trabalhar no campo da loucura, que mesmo sendo uma forma de morte, pode ser reversível. As primeiras aproximações com a psiquiatria clínica me abriram o caminho para um enfoque dinâmico, o que me levaria progressivamente, a partir da observação dos aspectos fenomênicos da conduta desviada, à descoberta de elementos genéticos, evolutivos e estruturais que enriqueceram minha compreensão da conduta como uma totalidade na evolução dialética.
A observação, dentro do material trazido pelos pacientes, de duas categorias de fenômenos nitidamente diferenciáveis para o operador (o que se manifesta explicitamente e o que subjaz como elemento latente), permitiu incorporar de forma definitiva em meu esquema de referência, a problemática de uma nova Psicologia que, desde o início, se dirigia para o pensamento psicanalítico.
O contato com os pacientes, a tentativa de estabelecer um vínculo terapêutico, confirmou o que, de alguma maneira, havia sido intuído: que por trás de toda conduta “desviada”, subjaz uma situação de conflito, sendo a enfermidade a expressão de uma tentativa falida de adaptação ao meio. Em síntese, que a enfermidade era um processo compreensível.
Desde os primeiros anos de estudante trabalhei em clínicas particulares, adquirindo experiência no campo da tarefa psiquiátrica, na relação e convivência com internos. Esse contato permanente com todo tipo de paciente e seus familiares, permitiu-me conhecer em seu contexto o processo da enfermidade, particularmente os aspectos referentes aos mecanismos de segregação.
Tomando como ponto de partida os dados sobre estrutura e características da conduta desviada que me eram proporcionados pelo tratamento dos enfermos, e orientado pelo estudo das obras de Freud, comecei minha formação psicanalítica. Isto culminou, anos mais tarde, em minha análise didática realizada com o Dr. Garma. Através da leitura do trabalho de Freud sobre “A Gradiva” de Jensen, tive a vivência de Ter encontrado o caminho que me permitiria obter uma síntese com base no denominador comum dos sonhos e do pensamento mágico, entre a arte e a psiquiatria.
Durante o tratamento de pacientes psicóticos realizado segundo a técnica analítica e pela indagação quanto a seus processos transferenciais, tornou-se evidente para mim a existência de objetos internos, multíplices “imago”, que se articulam em um mundo construído segundo um processo progressivo de internalização. Esse mundo interno configura-se como um cenário no qual é possível reconhecer o fato dinâmico da internalização de objetos e de relações. Nesse cenário interior tenta-se reconstruir a realidade exterior, porém os objetos e os vínculos aparecem com modalidades diferentes pela passagem fantasiada a partir do “fora” para o âmbito intra-subjetivo, o “dentro”. É um processo comparável ao da representação teatral, no qual não se trata de uma repetição sempre idêntica do texto, mas onde cada ator recria, com uma modalidade particular, a obra e o personagem. O tempo e o espaço incluem-se como dimensões na fantasia inconsciente, crônica interna da realidade.
A indagação analítica a partir do mundo interno levou-me a ampliar o conceito de “relação de objeto”, formulando a noção de vínculo, que defino como uma estrutura complexa que inclui um sujeito, um objeto e sua mútua inter-relação, com processos de comunicação e aprendizagem.
Estas relações intersubjetivas são dirigidas e se estabelecem na base das necessidades, fundamento motivacional do vínculo. Tais necessidades têm um matiz e intensidades particulares, nas quais já intervém a fantasia inconsciente. Todo vínculo, assim entendido, implica a existência de um emissor, um receptor, uma codificação e decodificação da mensagem. Através desse processo comunicacional, torna-se manifesto o sentido da inclusão do objeto no vínculo, o compromisso do objeto em uma relação não linear, e sim dialética, com o sujeito. Por isso insistimos que em toda estrutura vincular (e com o termo estrutura já indicamos a interdependência dos elementos), o sujeito e o objeto interatuam realimentando-se mutuamente. Nesse interatuar dá-se a internalização dessa estrutura relacional, que adquire uma dimensão intra-subjetiva. A passagem ou internalização terá características determinadas pelo sentimento de gratificação ou frustração que acompanha a configuração inicial do vínculo, que será então um vínculo “bom” ou um vínculo “mau”.
As relações intra-subjetivas, ou estruturas vinculares internalizadas, articuladas em um mundo interno, condicionarão as características de aprendizagem da realidade. Na medida em que a confrontação entre o âmbito do intersubjetivo e o âmbito do intra-subjetivo seja dialética ou dilemática, esta aprendizagem será facilitada ou obstaculizada. Ou seja, dependerá de que o processo de interação funcione como um circuito aberto, como uma trajetória em espiral, ou como um circuito fechado, viciado pela estereotipia.
O mundo interno se define como um sistema, no qual interatuam relações e objetos, em uma mútua realimentação. Em síntese, a inter-relação intra-sistêmica é permanente enquanto se mantém a interação com o meio. Formularemos os critérios de saúde e doença a partir das qualidades da interação interna e externa.
Essa concepção do mundo interno e a substituição da noção de instinto pela de estrutura vincular (entendendo o vínculo como uma proto-aprendizagem, como o veículo das primeiras experiências sociais, constitutivas do sujeito como tal, com uma negação do narcisismo primário), conduzem necessariamente à definição, da Psicologia, em um sentido estrito, como Psicologia Social.
Mesmo que estas colocações tenham surgido de uma práxis e estejam sugeridas, em parte, em alguns trabalhos de Freud (Psicologia das Massas e Análise do Ego), sua formulação implicava romper com o pensamento psicanalítico ortodoxo, ao qual aderi durante os primeiros anos de minha tarefa, e para cuja difusão contribuí com meu esforço constante. Acredito que essa ruptura significou um verdadeiro “obstáculo epistemológico”, uma crise profunda, para cuja superação levei muitos anos, sendo que, talvez, só hoje, com a publicação destes escritos, esta superação esteja sendo realmente conseguida.
Esta hipótese poderia ser confirmada pelo fato de que, a partir da tomada de consciência das modificações significativas de meu marco referencial, voltei-me mais intensamente para o ensino, interrompendo o ritmo anterior de minha produção escrita. Só em 1962, no trabalho sobre “Emprego do Tofranil no tratamento do grupo familiar”, em 1965, com “Grupo Operativo e Teoria da Enfermidade Única”, e em 1967, com “Introdução a uma Nova Problemática para a Psiquiatria”, obtenho uma formulação mais totalizadora de meu esquema conceitual, ainda que alguns aspectos fundamentais destes trabalhos estejam relacionados entre si, e muito especialmente nos mais recentes, ou seja “Propósitos e Metodologia para uma Escola de Psicólogos Sociais” e “Grupo Operativo e Modelo Dramático”, apresentados respectivamente em Londres e Buenos Aires, no Congresso Internacional de Psiquiatria Social e no Congresso Internacional de Psicodrama, no ano de 1969.
A trajetória de minha tarefa – que pode ser descrita como a investigação da estrutura e sentido da conduta, na qual surgiu a descoberta de sua índole social -, configura-se como uma práxis que se expressa em um Esquema Conceitual Referencial e Operativo. A síntese atual dessa investigação pode evidenciar-se pela postulação de uma epistemologia convergente, segundo a qual as ciências do homem concernem a um objeto único: “o homem em situação”, susceptível de uma abordagem pluridimensional. Trata-se de uma interciência, com uma metodologia interdisciplinar que, funcionando como unidade operacional, permite o enriquecimento da compreensão do objeto de conhecimento e uma mútua realimentação das técnicas de abordagem do mesmo.
22 de julho de 2021 ENRIQUE PICHON-RIVIÈRE
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