Durante séculos o Brasil funcionou sob a égide de um Estado escravocrata numa relação de absoluta hierarquia entre seus habitantes, uma relação marcada pela máxima “eu mando e você obedece”, o que naturalizou uma relação de submissão tendo de um lado os representantes da colônia, orientados pela lógica do exclusivismo metropolitano que determinava a emissão de riquezas para Portugal e por outro lado a saga dos africanos traficados para serem escravizados nas terras chamadas Brasil.
É por demais sabido que as relações de trabalho determinam lugares, valores e crenças. O fim da escravidão conquistado pela população negra no Brasil ao final do século XIX, e que teve como marco regulatório a Lei Áurea, não representou um novo pacto social que reconstituísse a humanidade precarizada com a escravidão.
O século XX brasileiro foi marcado pelo mito da democracia racial, que gerou uma série de incompreensões por grande parte da sociedade brasileira a cerca das conseqüências nefastas da escravidão e do racismo, que geraram prejuízos na relação do Estado com as pessoas negras, naturalizaram situações de violência e amalgamaram contornos cordiais para os baixos índices de desenvolvimento humano desta população.
Na contramão do grande consenso cordial e tenebroso à brasileira ecoaram as vozes iluminadas de lideranças do movimento negro brasileiro, vozes que foram rechaçadas pela elite pensante do país, inclusive pela intelectualidade da esquerda. Essas vozes conseguiram a proeza de pautar o debate racial, identificar o racismo estrutural enquanto fator definidor da pobreza e oferecer à sociedade uma agenda afirmativa a exemplo das políticas de cotas raciais; da Lei 7.716/88 (Lei Caó), que transforma o racismo em crime imprescritível e inafiançável; a Lei 10.639/03 que dispõe sobre o ensino da historia da África e da literatura afro brasileira nas escolas publicas e privadas e a criação de organismos e estatutos que normatizam o Estado numa perspectiva reparadora.
É nesse contexto que se inserem o Estatuto Nacional da Igualdade Racial e o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate a Intolerância Religiosa do Estado da Bahia, este último instituído pela Lei 1.182/14, cuja finalidade é garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa de direitos individuais, coletivos, difusos e o combate à discriminação e demais formas de intolerância racial. O Estatuto cria o sistema estadual de promoção da igualdade racial que busca integrar os municípios baianos, articulando-os com o sistema nacional de promoção da igualdade racial criado em 2010.
O sistema estadual é coordenado pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial- SEPROMI, que tem como órgãos de participação e controle social o Conselho para o Desenvolvimento da Comunidade Negra- CDCN e a Comissão Estadual para a Sustentabilidade dos Povos e Comunidades Tradicionais- SESPCT. O Estatuto prevê também a alocação especifica de recursos do Fundo de Combate a Pobreza, para o financiamento de políticas de promoção da igualdade racial. Os direitos fundamentais da população negra estão previstos no Estatuto da Igualdade Racial e de Combate a Intolerância Religiosa do Estado da Bahia, a saber:
– direito a vida e a saúde; – direito a educação; – cultura, esporte e lazer; – direito a terra; – direito ao trabalho, emprego, ao empreendedorismo e desenvolvimento econômico; – direito a segurança pública; – direito a justiça; – direito a liberdade religiosa.
Longe de ser uma panacéia e para além de corresponder a uma prescrição de condutas democráticas e de respeito à diversidade étnico-racial, o Estatuto da Bahia é um instrumento didático- pedagógico de auxilio à sociedade civil para combater o racismo, a discriminação, a intolerância religiosa e, sobretudo construir novos olhares sobre a contribuição civilizatória da matriz africana no Estado da Bahia, e não permitir que as nossas diferenças étnico-raciais sejam determinantes para a redução de direitos. 25 de novembro de 2019 Ailton Ferreira Sociólogo, ex-presidente do CDCN, ex-secretário da Reparação, assessor especial da SEPROMI.
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